Não era fazendo-se ouvir, mas mantendo a sanidade mental que a pessoa transmitia a sua herança humana. Voltou para a mesa, molhou a pena da caneta e escreveu:
'Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós — a um tempo em que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito: Da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento — saudações!'
'A miséria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na história. O sol ensinou-me que a história não é tudo.' A. Camus, in O Avesso e o Direito
A «zona cinzenta» é aquela onde o bem e o mal não estão nitidamente delimitados, onde as vítimas e os seus perseguidores se encontram por vezes do mesmo lado, o dos prisioneiros. (...) O interior dos campos era um microcosmos intricado e estratificado; a ‘zona cinzenta’, a dos prisioneiros que, em qualquer medida, se calhar mesmo por bem, colaboraram com a autoridade, não era estreita, pelo contrário, constituía um fenómeno de importância fundamental para o historiador, o psicólogo e o sociólogo. Não há prisioneiro que não se lembre disso, e que não se lembre do seu espanto na altura: as primeiras ameaças, os primeiros insultos, as primeiras pancadas não provinham dos SS, mas sim de outros prisioneiros, de ‘colegas’ daquelas misteriosas personagens que no entanto vestiam a mesma túnica às riscas que eles, os recém-chegados, acabavam de envergar. Primo Levi, in O Dever da Memória