terça-feira, 30 de dezembro de 2014

© ssobrado, viseu, 2014 | 39




gnr | bem-vindo ao passado



Há vária gente que não gosta de evocar o passado. Uns por energia, disciplina prática e arremesso. Outros por ideologia progressista, visto que todo o passado é reaccionário. Outros por superficialidade ou secura de pau. Outros por falta de tempo, que todo ele é preciso para acudir ao presente e o que sobra, ao futuro. Como eu tenho pena deles todos. Porque o passado é a ternura e a legenda, o absoluto e a música, a irrealidade sem nada a acotovelar-nos. E um aceno doce de melancolia a fazer-nos sinais por sobre tudo. Tanta hora tenho gasto na simples evocação. Todo o presente espera pelo passado para nos comover. Há a filtragem do tempo para purificar esse presente até à fluidez impossível, à sublimação do encantamento, à incorruptível verdade que nele se oculta e é a sua única razão de ser. O presente é cheio de urgências mas ele que espere. 

Vergílio Ferreira, in Conta-corrente 5










terça-feira, 2 de dezembro de 2014



© ssobrado, porto, 2014 | a ponte



É urgente elevar a pessoa à posição do espanto. É daí que se abre o mundo. 
Qualquer coisa possui em si o mistério de tudo e a nossa distância vai daqui para ali, e volta. 

Pedro Paixão, in O Mundo é Tudo o que Acontece




na foto: Paulo Calatré





quinta-feira, 27 de novembro de 2014


© ssobrado, porto, 2014 | real - imaginado




Seja como for, vivo agora num país de fronteira. É onde me sinto bem. Bem... à vontade. 
Pelo menos já não me preocupa se o que eu penso é fantasia ou se aquilo que eu tomo como imaginado 
por mim pode muito bem ser real... a realidade externa. 
Real - imaginado - facto - ficção - fantasia - realidade - eis o que me parece ser. E parece-me bem. 
Porque é que deveria continuar a interrogar-me?

'Molly Sweeney', de Brian Friel

* na foto: Paulo Calatré



segunda-feira, 24 de novembro de 2014




© ssobrado, porto, 2014 | breve interlúdio






Como é difícil entendermo-nos com a vida. Nós a compor, ela a estragar. Nós a propor, ela a destruir. O ideal seria então não tentarmos entender-nos com ela mas apenas connosco. Simplesmente o nós com que nos entendêssemos depende infinitamente do que a vida faz dele. Assim jamais o poderemos evitar. E todavia, alguns dir-se-ia conseguirem-no. Que força de si mesmos ou importância de si mesmos eles inventam em si para a sobreporem ao mais? Jamais o conseguirei. O que há de grande em mim equilibra-se nas infinitas complacências da vida que me ameaça ou me trai. E é nesses pequenos intervalos que vou erguendo o que sou. Mas fatigada decerto de ser complacente, à medida que a paciência se lhe esgota em ser intervalarmente tolerante, ela vai-me sendo intolerante sem intervalo nenhum. E então não há coragem que chegue e toda a virtude se me esgota na resignação. É triste para quem sonhou estar um pouco acima dela. Mas o simples dizê-lo é já ser mais do que ela. A resignação total é a que vai dar ao silêncio. 

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 4'



* na foto: Paulo Calatré





terça-feira, 23 de setembro de 2014



© ssobrado, porto, 2014 |  a vida é uma festa*



* Parabéns, corvinho ;)


'(...) nunca houve ninguém tão louco que não conseguisse 
chamar a si todo o céu com um sorriso.'

E. E. Cummings





domingo, 21 de setembro de 2014




© ssobrado, lisboa, 2013 |  momento íntimo




'Sempre considerei que fotografar era uma coisa atrevida, o que, aliás, foi uma das coisas que mais me atraiu', 
escreveu Diane Arbus, 'e quando fotografei pela primeira vez senti-me muito perversa'.

Susan Sontag, in Ensaios sobre Fotografia








sábado, 20 de setembro de 2014






©
 ssobrado, paços de gaiolo, 2014 |  do carro*



Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? 
Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.
(...) As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

Bernardo Soares (semi-heterónimo de Fernando Pessoa), in Livro do Desassossego 





quarta-feira, 27 de agosto de 2014


   
© ssobrado, porto, 2014 |  o equilíbrio do medo








(...) Serei capaz 
de não ter medo de nada, 
nem de algumas palavras juntas? 


Manuel António Pina, O Medo, in 'Nenhum Sítio'






terça-feira, 19 de agosto de 2014


© ssobrado, porto, 2014 | será assim o amor





Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura

Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor

José Tolentino Mendonça, Os Amigos in De Igual para Igual






domingo, 13 de abril de 2014

© ssobrado, lisboa, 2014 | nesse quarto sossegado




Há sempre um quarto sossegado na esquina do nosso ser e podemos sempre recolher-nos nele para descansar. Não nos podem tirar isso. Há um ano que estou a trabalhar sem parar nesse quarto sossegado dentro de mim, e agora ele tornou-se numa grande sala, verdadeira e autêntica. 


Etty Hillesum, Diário (5 de Julho de 1942)







terça-feira, 11 de março de 2014


© ssobrado, porto, 2014 | exílio




Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades.  

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto






terça-feira, 21 de janeiro de 2014



© ssobrado, lisboa, 2013 | point mort






Quero-me, enfim.
Procuro os pedaços de alma 
que só na memória sinto.
Chegou o tempo. Reclamo cada um. 
Encontre-me a morte inteira.

S.S.






* em memória do meu amigo Zé Monteiro.